Estou a gelar e os ossos rangem
Como o velho soalho do corredor daquela casa!
Saio da escrivaninha e encontro-me na rua, diferente…
Mas tenho frio, e é isso que me aflige…
A rua não é a mesma onde vivo agora, mas onde outrora vivi
E este sol de inverno congela a pele que outrora tive…
Vejo dois velhos mais novos do que os que conheço, e chamam-me:
“Vem p’ra dentro, moço, daqui a pouco o teu pai arreia (1)!”
Hesito e, por momentos, pouco me importo com o álgido ar…
Vejo um céu alaranjado com timbres de invernias
E um bairro com uma calçada familiar.
Reparo que minguei com este encontro,
E os calafrios vão-me promovendo dores cogitais!
Subo a escadaria branca sarapintada daquela casa,
O corrimão fica insensível ao meu toque, de tão invernal!
Deixo-me ficar pela varanda, a despedir-me daquele globo de cristal,
E o nariz que tive vai ficando dormente, de congelado, por sinal!
A manta negra estrelada cobre o meio, e vejo o último gelar de Apolo…
Ouço o estalido da lenha que vai sendo posta na fornalha,
Na cozinha verde-azulada daquela casa com canalha…
Resolvo entrar e a canalha conhece-me como se fosse cliente regular,
Tão regular como o ranger do soalho.
Meto-me ao lado da fornalha e sinto uma quentura que me abraça e beija
A pele quase cristalizada, pele que outrora fora minha!
Sinto o cheiro duma comida de que já provara o gosto outrora,
Ouço o rádio que palra e o pêndulo que oscila a toda a hora,
Vejo pela janela do grande salão uma lua que vira outrora,
Vejo no espelho do corredor a criança mais feliz que alguma vez existiu,
Ergue-se e sussurra-me ao ouvido: “Não te vás embora…”
O batom ardente vai-me corando as bochechas,
Aquele calor agora era uma ardência possessiva,
Ciumenta de um possível desvanecimento meu.
Tiro o casaco e afasto-me daquelas chamas…
Na mesa, vejo bolachas de chocolate, livros com sarrabiscos,
Lápis e marcadores, só simplicidade e risos…
Tento contemplar a Lua, Lua que já me conhecia bem,
Já sabia o sabor dos meus sonhos, dos meus pesadelos,
Dos rebuliços que povoavam o meu sonho outrora…
Eu já aqui estivera, já havia brincado com a balança verde,
Com a lata de bolachas com alfinetes, linhas e agulhas,
Já conhecia o mundo mágico que há por debaixo da mesa…
As mãos já me ferviam, e sentia os poros mais que dilatados,
O Sol invernal havia sido trocado por uma Lua infernal.
As enxaquecas passaram a dores de um estado mais que febril,
Mas, honestamente, gosto desta febre, aproveito e sento-me no velho sofá
(Que ainda não é velho, mas, para mim, outrora assim fora),
Deixo-me estar, e fico para jantar!
Entretanto, o sono embrulha-me naquele manto esquentado,
E o pêndulo de tanto oscilar já se cansou…
Aos poucos abro os olhos, estou à escrivaninha com outra idade
A escrever um poema sobre uma mentira contada pela saudade…
(1) “arrear”- no contexto, significa sair do trabalho.