Desliguem-me tudo. Estou mais que farto. Estou fartíssimo. Estou cansado de tudo. Digam ao “Sôr Engenheiro Naval” (1) para desligar as suas prediletas, que o ruído delas me martiriza até ao mais minucioso átomo que me constitui.
Esta febre crónica tem estado mais que acesa. Não tão acesa como essas luminárias que me esturricam as retinas, imperfeição da invenção humana que simula mal e porcamente as graciosas e minuciosas lâmpadas celestiais que navegam naqueles mares infinitos de veludo negro que nos envolvem quando o Astro Rei se vai.
Sim, sou um ocidental, mas não quero mais ter de andar “Ao Gás”. O tresandar do gás ficou lá no tempo de Cesário (2), graças a Deus, mas o que comigo está agora é o ruído que os eletrões cismam em produzir naqueles candeeiros vertiginosos, que mal iluminam as ruas com o seu brilho laranja cansado.
Moços! Espetem pregos nos cascos dessas montarias fumarentas. Troquem as jerricãs de vinho árabe obscuropor qualquer outro líquido suspeito. O ronronar daqueles motores nas horas de ponta cinge o meu pensamento. Agora para os meus não simpatizantes, se me quiserem ver morto, enfiem-me num daqueles jazigos cinzentos, cheios de vitrais rodeados por ainda mais jazigos com arquiteturas do mais sem alma que há, murchas, monas. Não quero contrair a maleita desse ambiente doentio, o cancro urbano.
Minhas gentes! Queimem os placares abissais, cheios de cores mais que vibrantes e hipnóticas que nos drogam, nos deixam anestesiados e viciam a seguir filosofias do Cifrão e do Ouro (3) e dos seus servos, os homens de gravata que honram a arte teatral e do fingimento naqueles auditórios nobres.
Estou saturado… Não aguento mais aqueles ecrãs com tamanhos que invejam fachadas de gloriosos monumentos, a cegar-me as vistas e a estourar com os meus tímpanos. Será real aquilo que vejo nesses televisores? Deverei eu confiar no sensacionalismo exacerbado e desmedido que esses pivôs e apresentadores adotam? Arre, para além desta insatisfação, tenho a praga pirronista a consumir todas as minhas crenças e fé. (4)
Estilhacem esses ponteiros que nos regem! Aquele movimento circular dá-me náuseas e o repicar dos segundos age como um florete que me fura. Nem o sino da igreja faz uma pausa para que eu possa acabar de escrever este meu lamentar… Nem quando pouso a boquilha na boca, sopro e pressiono as chaves do meu instrumento esse cretino me deixa. Sempre com o insistente metrónomo a exercer uma ditadura perante as quase melodias que tento tocar.
Ele levou o Tiaguinho para longe… Onde é que estás agora? Com ele roubou também a minha inocência, a minha real Felicidade, e em troca o que deu? Nada. Bem, deu sim senhor. Deu-me uma cabeça que não para de pensar. Ainda ando à procura do travão de mão desta coisa, dava-me jeito saber…
Estou vazio. O que me resta? Meramente eu, eu e o meu pensar. Essa besta.
NOTAS:
(1)-Referência a Álvaro de Campos e à Modernidade (“as suas prediletas”).
(2)-Referência à 3.ª parte do poema O Sentimento de um Ocidental, de Cesário Verde, na qual o sujeito poético deambula à luz dos candeeiros a gás (que tresandavam).
(3)-Consumismo.
(4)-Referência ao Ceticismo Pirrónico, corrente filosófica que defende que não podemos provar a existência/possibilidade de conhecimento, neste caso relacionando-se com a ideia de que tudo o que vemos e sentimos pode ser meramente ilusão ou irreal.
Muitos parabéns, Tiago!! Gostei muito de ler os teus sentimentos, enquanto aluno de uma escola à beira rio situada.