“Verdes Anos”, por Tiago Freitas (12.ºA)

No instante em que dizia “Até Logo” e me dirigia à porta para sair, dão, num brevíssimo instante, alguns acordes numa reportagem que passava na TV. Eram inconfundíveis. Naqueles escassos segundos reconheci logo a melodia da nossa guitarra portuguesa trinada por Carlos Paredes. Era “Verdes Anos”.

Aproveitei, já que aquela melodia lusa não saía da minha memória, e, no caminho para a escola, fui ouvindo os trinados de Paredes. Para além de “Verdes Anos”, a “Balada de Coimbra” e a “Em memória de uma camponesa assassinada” foram melodias que arrendaram vivenda na minha cabeça o resto do dia.

Era segunda-feira. E a meio da manhã provara o gosto da incompreensão. O não reconhecimento. O esforço foi em vão.

 Chegara à raiz, o meu Rio Mau. Eram quase duas da tarde. Sentia ainda muita revolta. Cerrei-me em casa algum tempo na escrivaninha a estudar. Por volta das 16h00, a Sra. Maria Arminda veio ao andar de baixo perguntar se já era para ir encher o buxo. Pedi-lhe que esperasse até às cinco menos um quarto para me preparar o café.

                “A música de Carlos Paredes é a música mais portuguesa que existe”. Dissera isto alguém. Concordo plenamente. O trinar daquelas cordas transporta a “portugalidade”, a saudade, o patriotismo. As melodias continuaram vivamente presentes ao longo do dia. E mal sabia eu que seria a trilha sonora de quase um mês, uns trinta dias de guerra.

 Subi ao andar de cima para lanchar. Como sempre, a minha avó, Maria Arminda, fuzilava o Manel Cortiça, o meu avô. Entretanto, chegara um outro neto, do (bairro) Além Ribeiro, com a sua companheira. Ambos são músicos. Ele percussionista e ela oboísta. O Manel Cortiça, aproveitando o contexto, perguntava como iam as minhas aulas e as do meu irmão na escola de música da nossa banda.

O homem adorava ouvir o entoar das notas projetadas pelo meu saxofone. Eu adorava aquele tempo, sempre ali passado a lanchar com eles. Era um refúgio. Mal eu sabia que seria o último, pelo menos, o último durante um longo, quase interminável, período negro, ingrato, frio que iria abraçar os “Cortiças”.

 Na manhã seguinte, 14 de novembro…. Fora apocalíptico esse dia…

Instalara-se um alarido em casa. Sentia a minha mãe assustada. Recebera um telefonema vindo da Lomba. Era a minha tia. Quando soube o mote da ligação, fiquei congelado por uns momentos. A minha mãe dissera-me que a minha avó fora atropelada. Eram sete da manhã e o dia começava já assim. Ela fora apressada a correr para a marginal, na curva do Meandro, um pouco mais à frente, mais precisamente onde acontecera o acidente.

 Eu tinha ficado em casa a cuidar do meu irmão, quando recebera outro telefonema, a pedir os documentos, peguei nas trouxas da escola, sem saber muito bem se tinha tudo, fui a correr abaixo o bairro todo.

 Fiquei perplexo. Via aquela figura, sempre imponente, a personificação de ambição, consistência, resiliência e teimosia, ali, estendida no chão.

 Fui para a paragem mais próxima. Passei desde as 7:10 até às 8:30 tortura imensa. Ver a “vó” ali no asfalto, imóvel, e umas quantas bisbilhoteiras do outro lado da estrada a fazer conjeturas erróneas. Fui humano e deixei-me ser dominado por aquelas falsidades proferidas.

 Diziam que a Maria Arminda estava inconsciente a derramar sangue. Mentiam. Pelos vistos, no resto da aldeia, já diziam que a vítima tinha sido a mulher do Risadas, e que já estava enrolada em lençóis, morta numa valeta.

Fiquei abalado com aquilo tudo. Fora um tufão de emoções. Os próximos dias seriam pesadelos autênticos.

Ainda hoje desconheço alguma ligação da música de Carlos Paredes com aquela mulher. Ao “Fado Moliceiro” e à “Sede e Morte” fiquei rendido. Faziam-me lembrar a Maria Arminda.

O “vô” ficara abalado. Notou-se aí o amor que o homem sentia pela mulher que contra ele discursava sempre. O que mais me surpreendera fora o facto de nós, netos, filhos, genros, noras, não termos conseguido fazer aquilo que aquela mulher ambiciosa fazia todo o santo dia. Desde cuidar da lavoura, pensar as ovelhas, tratar das achas para o fogão a cuidar da casa…

                Eu sentia-me puxado para todos os lados e direções. Era desumano conciliar tudo. Escola, vida, guerra. Pouco dormia. De manhã quase cambaleava. Só via como refúgio as aulas que ia tendo na banda. E, claro, o trinado de Paredes.

                Nas tardes livres, ia estudar para a sala do compasso. A divisão de que os antigos apenas usufruíam na Páscoa. O salão era muito gelado e não valia a pena ligar outro fogão. Vira brilho nos olhos do “vô” quando trouxe a mala de couro do saxofone, já com sinais de muito uso, para o andar de cima. Para consolo dele, pus-me a tocar algumas peças. Vi-o realizado.

                Felizmente, a Maria Arminda estava a recuperar, apesar de terem sido descobertas mazelas de acidentes já passados. Podiam ter sido tratados na altura, mas, por teimosia, a avó recusava-se a ir ao médico. Podem não acreditar, mas esta senhora, outrora, levou com um eucalipto em cheio na cabeça. Quebrou o crânio, e simplesmente continuou a viver a vida normalmente. Deveras impressionante.

                Achei miraculoso o facto de termos sobrevivido a estes tempos de guerra. Raramente havia paz em casa. O momento mais aguardado por mim era quando ia dormir.

                Agora, com a Maria Arminda a recuperar em casa, aos poucos vai tomando tudo o seu lugar, bem, quase tudo, tirando as serenatas jazzísticas ou os constantes trinados mágicos de Paredes, que vieram para ficar…

Fernando Belece

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