“O Enterro”, por Tiago Freitas (12.ºA)

A noite estava impossível de se aturar. Chovia torrencialmente. Havia muita ventania. Venci o sono e, às 6:00, como ainda era cedo, refastelei-me na poltrona, liguei o rádio e pus-me a divagar por aquele Jazz Noir que passava na Antena 2.

                Passei hora e meia, meio a dormir, meio acordado, iluminado apenas por aquela delicada lâmpada amarelada que brilhava na sombra calma e molenga daquele cubículo.

                O tempo lá fora ia acalmando progressivamente. Resolvi espreitar, saindo. Já não chovia, sentia-se aquele cheiro emblemático a terra molhada e o céu ainda se mostrava indeciso, naqueles tons cinzas claros e escuros, quanto a se ia chover ou não… Já não ventava, até se ouviam uns chilrearzitos de pequenos pássaros.

                Voltei para dentro. Fui à janela que mirava o Douro. Daí via que a estrada estava pouco movimentada. Não via a correria habitual das gentes que iam de manhã, ocupar-se do seu mester. Não passavam os habituais rebanhos de camiões, de cisternas, de Pick-ups, as camionetas e as carrinhas que levavam os trabalhadores para os estaleiros e as gentes da apicultura para as fábricas. Era muita monotonia para uma sexta-feira.

                Viro-me de volta. Reparo que, na estante, um livro se empoleira da prateleira, prestes a cair. Estava desfasado da harmonia organizada dos outros livros, estava mais para fora. Talvez alguém tenha tido vontade de ler aquela obra, que, depois, quando me aproximei um pouco, vi que era a obra dramática de Garrett. Ora, veio mesmo a calhar. Se cá tivéssemos uma D. Madalena2, esta diria logo que a estranheza deste dia era presságio, aliás, já por experiência sabia ela que a sexta-feira era dia de agouros.

                Parece que Apolo se lembrou de perfurar um pouco aquele cinzento dilemático. Resolvi dar uma volta. Vesti o capote e saí.

                Resolvi ir sem rumo. Assim como ele invocou Camões, eu invoco-o a ele mesmo, o homem dos “passeios sem rumo”, das divagações, das deambulações, Cesário Verde1.

                Subi a rua Belo Horizonte. Cheguei ao entroncamento. Virei à esquerda para quem vai para as Corgas. Os raios luminosos começaram então a fraquejar.

                Passava rente ao muro dos campos da antiga casa do Sr. Guloso. As vinhas pendiam para o caminho, estavam ali debruçadas, sem vigor, definhadas. No lado de baixo do caminho, nem se viam os coelhos bravos a esgaravatar no mato ao lado da casa da Nair.

                Aquele silêncio era ensurdecedor. Avisto mais à frente o fontanário das Corgas.

                Aquela fonte estava seca. Nem uma gota saía daquela torneira. O banco de pedra, ao lado, estava coberto por um monte de musgo. Já ninguém por ali passava há eternidades. Prossegui.

                Passei pela casa do velho Manel Cazoto, onde se matava o porco. Agora já nem há porco para matar, nem Manel Cazoto para se cumprimentar. Aquele terreno é imenso, mas o velho só povoava aquele cantinho, ele e os seus frangos que iam trazendo alguma vida àquele pátio quase deserto. Agora ali há um velho casebre, dominado pela solidão e as ervas daninhas do Tempo que o vão deteriorando.

                Fui descendo as Corgas. Cheguei ao Quartel dos Oito. Em vez de ir pelo caminho que passa à porta da D. Fernanda, resolvi ir pelo outro lado. Naquele momento instalou-se uma ventania repentina. Os campos do Betinho, à esquerda, já tinham algumas espigas, estas ainda molhadas das chuvas da noite. Com a ventania, a tramela dos campos desse meu tio berrava. Aquele ruído parecia um bradar de sofrimento, a pedir ajuda.

                Segui, cheguei aos Justercos. Fui sair mesmo ao lado do fontanário do bairro. Ainda pensei em matar a sede, mas este ainda tinha sido vítima maior do esquecimento e abandono do que o outro de lá de cima.

                Desci os Justercos, cheguei à Sobreira.

                Aquela casa de pedra sempre me cativara quando era pequeno. Imaginava-me no andar de cima, num dia chuvoso, ao abrigo do abraço caloroso de uma lareira, a avistar o Douro. Foi naquele edifício que outrora houve o café do Psica, o “Rio Bom”. Ao passar agora lá, com tudo cerrado, vejo os antigos a lá se dirigirem para tomarem um bom café, conviver e resmungar sobre o desconcerto da sociedade, ou, pelo menos, vejo os seus espectros…

                Desci até à marginal. Por incrível que pareça, as Sedes do Futebol e da Banda estavam desertas. Nunca vi os pátios daqueles estaminés vazios, mas, naquela sexta-feira tristonha, ninguém lá estava para pedir uma boa “jola” ou uns bons copos de vinho.

                A Fonte da Sobreira, o “Fontanário-Rei”, ainda ia pingando umas míseras gotas. Fui espreitar o tanque. Onde as pingas iam incidindo havia uma mancha meio encarnada. Fatalmente intrigante.

                Subi o bairro do S. João. A ventania intensificou-se mais uma vez. Os céus estavam a escurecer-se. Reparei que o Douro estava agitado. Parei na parte mais plana onde fica o fontanário do Outeiro. De todos, este parecia ser o mais dizimado. Tão seco e ressequido que nem o musgo sobrevivia àquele deserto. Os blocos de pedra que compunham a fonte tinham uma pigmentação carmesim desbotada…

                Todas aquelas circunstâncias causavam-me uma angústia que me devorava.

                Segui a rua cheia de altos e baixos que vai dar à igreja. Parei na Pia da Casca. Virei costas ao Douro para ver o rio que dá nome à terra. Ali, diante dos meus olhos, estava o rio Mau que lavrava fragas, abrigava o “Bicho da Luzia”, cachalotes e outros seres míticos, o rio antes da barragem de Crestuma ser construída. Não se via mais o estradão de baixo. Os juncos estavam a ser engolidos pelas águas que iam cobrindo todo o vale. Virei-me para a serra. Até as eólicas nos viraram as costas, e, como elas, as gaivotas fugiram apavoradas do último canto penafidelense.

                Voltei ao caminho principal e dirigi-me à igreja.

                Fiquei petrificado. Havia chegado ao apogeu. Via-te a ti, ali, a falecer nas mãos daquelas gentes. Gentes que desonram o teu brasão, gentes que te desprezam, gentes ingratas, parasitas procrastinadores. Tu, ali, naquele tormento, e eles. ali, a gozar o momento, na maior paz, ali, a prepararem o teu enterro. Contigo morre o nosso rio, contigo morre o Padre Manuel Sousa Tavares e a “Lusitana”, contigo morre a abelha-rainha, morre a abelha-operária e morre o zangão, contigo morre também a abelha que pousa naquela lira bordô bordada naquelas fardas brancas que te levam no peito, contigo morre toda a coletânea de lendas e mitos que te circundam.

                Mas calma, vejo gentes que ainda lutam por ti, que suam e sangram pelo teu legado, por toda a tua história. Gentes que querem preservar o “peito ilustre riomauense3” para o Futuro, gentes que te querem imortalizar, passando pelo desporto, lazer até à Cultura e Arte. Admiro-os…

                Tudo aquilo a passar-se no pátio da igreja e eu, ao fundo da grande rampa, petrificado, sem conseguir agir, a levar com a chuva que fazia da minha cara um oceano… A angústia era um monstro que, naquele momento, me ia rompendo, bem lentamente, esmerando-se no padecer causado até que…

                Acordei.

Notas:

  1. Alusão ao poema de Cesário Verde, “O Sentimento dum Ocidental”.
  2. D. Madalena, personagem de Frei Luís de Sousa, Almeida Garrett.
  3. Alusão ao poema épico de Camões, Os Lusíadas.

Fernando Belece

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